domingo, 9 de novembro de 2014

5 perguntas para Gabriel Resente Santos, autor do livro "Elevador"



Inicialmente, pretendia publicar apenas estas singelas perguntas no Boletim Leituras. Mas, como sempre, me deixei carregar pelos impulsos e o resultado foi uma resenha além da entrevista. E como gosto de aproveitar todas as partes do bicho, posto aqui o questionário que não entrou. 

 


Breve registro no bar do Adão, entre chopes, pastéis e leituras de poemas.

Como surgiu o livro "Elevador"?

Elevador surgiu, na verdade, com a necessidade de definir o que escrevia de um modo organizado. Embora adore as mídias virtuais, blogs, revistas, sou incapaz de me organizar nesse meio. Tinha a opção do e-book, do pdf, mas aí entra a vontade de ter um livro publicado em papel também. Esse livro começou a ser feito em 2012 e só ficou pronto, nesta versão definitiva, em maio de 2013. Mas creio possuir textos que datam de 2011, já não tenho certeza. A instabilidade, que me caracterizou nos últimos anos, também tinha de ser justificada. Elevador pode ir do sentimental ao alucinante, do sereno ao nervoso, do soneto ao haikai, como se cada forma de fazer poesia, ou cada sensibilidade poética, fosse ela mesma um novo andar. Por isso é também uma experiência desigual, às vezes, e creio ser difícil agradar a todos como unidade -  a não ser que haja unidade na própria instabilidade, na própria necessidade de mudar, questões que passo a vida tentando resolver. De qualquer forma, acho que o livro é uma maneira charmosa de desculpar minha incoerência. E meu editor, um cara fantástico, decidiu desculpá-la também.

Quais autores considera essenciais e por quê?

São muitos. Acho que Edgar Allan Poe vem acima de todos. Ele foi minha iniciação, nunca envelhece e talvez seja o exemplo maior de um escritor dedicado às características rítmicas de sua obra, na prosa e na poesia. Acho que Dante também pode ensinar mais do que a maioria dos autores. Mas Kafka, Eliot, João Cabral, Drummond, Piva, Lorca, Murilo Mendes e Victor Hugo, entre os grandes mestres, também são nomes que sobressaem. Dos vivos, Augusto de Campos é Augusto de Campos. Também Zuca Sardan, que retornou recentemente com o Ximerix. Brilhante.

Quais são a maior virtude e pecado do escritor?

Acho que escrever. Não é a tentativa de ser curto e grosso à la Clarice Lispector, não, mas é que realmente há algo de virtuoso e ao mesmo tempo condenável no ato de escrever. Por quê? Não sei explicar, mas há.

Como é seu processo de escrita?

Isso varia de texto para texto. O "poema de chuva para stanley kubrick" passou por diversas modificações no decorrer de, acredito, dois meses silenciosos. Recebi críticas de amigos confiáveis, percebi que algumas coisas não se encaixavam e outras eram salváveis. Daí ajeito a métrica, resolvo a rima, etc. No fim, ele mudou muito, virou uma espécie de poema-roteiro. O "mais um exorcismo" levou algumas horas. Ao som de muito Goblin, que fez a trilha-sonora do “Suspiria". Acho que música e escrita só têm uma relação benéfica em alguns casos, quando você precisa de uma certa atmosfera sem o risco de perder a concentração. Já "guia completo do homicídio prático", que abre o livro e é de 2012, foi mais instintivo do que aparenta. Acho que a maturação dos textos acontece bem antes mesmo, não necessariamente quando começamos a pensar em passá-los para o papel. Na verdade os três levaram, num nível de pura consciência, uns 9, 10, 11 meses para serem feitos.

Como define literatura?

Acho que me defino por ela. Só existo lendo, só existo escrevendo. Sou terrivelmente desajeitado, desajustado, desarrumado com todo o resto. Agora, não posso definir o que é literatura. Difícil. Talvez seja um encontro. A arte de encontrar o outro, ou melhor, a arte de encontrar a si próprio no outro. É uma tentativa, pelo menos.


Link para a resenha no Boletim Leituras:

http://boletimleituras.com.br/?p=7707

Leia textos do autor em:



domingo, 18 de maio de 2014

Uma festa no inferno: Revendo o filme “The Doors”





O crítico de cinema Roger Ebert definiu o filme “The Doors” como uma comemoração infernal. Ao mesmo tempo em que reconheceu as qualidades técnicas da obra, incomodou-se bastante pela autodestruição retratada. Seu parceiro no programa televisivo “Siskel & Ebert”, Gene Siskel, também foi afetado pela atmosfera do filme, mas o defendeu em sua composição de uma época de descobertas, excessos e destruição simbolizada pela figura de Jim Morrisson. Mais de uma década após esta discussão e o lançamento, pode-se afirmar que o longa-metragem dirigido por Oliver Stone mantém intacto o clima carregado aliado a imagens fortes e hipnotizantes.
Revi um filme em uma sessão no Cine Joia, localizado em Copacabana. Assisti-lo em uma tela grande potencializa o impacto da obra. Apesar de possuir uma escala menor do que as produções épicas que Oliver Stone realizava no período, “The Doors” não é menos ambicioso. Alterna técnicas diversas de iluminação, enquadramento, movimentação e edição para criar um ambiente caótico de sonho/ pesadelo. O que incomodou tanto a  Ebert e me fascinou é a mão pesada que segura e não larga o espectador. “The Doors” almeja uma camada sensorial e chega perto de seu objetivo. São imagens fortes e belas, carregadas de significado. O tema da morte é presente em quase todas.
O Morrisson cinematográfico, mais do que um artista autodestrutivo, é um profeta apocalíptico, que promete a revelação em troca de sua alma. Embora seja o subtexto do filme e do personagem, há sequências que explicitam o tópico. A música pode ser um portal para o outro mundo, como a morte física. Se há algo que irrita as pessoas é ser lembrado de sua mortalidade.
Torna-se óbvio que não se trata de uma obra realista em qualquer momento, mesmo sendo baseada em história. Os fatos servem à arte, e são reconstruídos para se adequar à interpretação de Stone do que a música do grupo e a performance do vocalista significavam. Enquanto a construção cênica é de uma psicodelia hiper-realista, Stone optou por um roteiro e direção de atores realista.
A escalação é feita com atores competentes e que se assemelham às personalidades reais e a trama segue uma ordem cronológica. Se por um lado é uma opção que evita que o filme alcance o estado sensorial que ambiciona, também permite uma aceitação de um público mais tradicional e abre caminho para destacar o protagonista em meio à “normalidade” da trama e das atuações.
O desempenho de Val Kilmer, chamado de “espírita” por alguns, é a ponte entre a encenação surreal e o palco da realidade. Ao optar por uma incorporação no lugar de uma interpretação, Kilmer atinge o raro equilíbrio entre atuar e “ser” o personagem. É uma decisão que poderia dar errado, e desviar para uma caricatura ou um esforço fútil. O ator consegue atingir uma fusão entre si e o personagem, fato que se torna mais admirável por se tratar de alguém que existiu e que foi registrado em gravações. Assim, é possível aceitar “The Doors” como um estudo sobre o mundo reconstruído através da arte, alterando padrões sociais e comportamentais através de uma ação agressiva e sugestiva do artista.
Morrisson foi comparado a seu ídolo, Arthur Rimbaud, que também viveu uma juventude intensa e forte em criação. “The Doors” não é uma temporada no inferno, mas uma festa, com começo e hora para terminar. É um filme que resistiu bem como um retrato pessoal de um momento histórico, um musical ousado e uma crônica filosófica sobre um homem que possuía grandeza, mas encontra a ruína pela dor que o consome por dentro. Ruína esta que lhe concede imortalidade. A arte é uma musa faminta.

*Anedota sobre a sessão em si: Ouvi risos em uma cena de luta entre o protagonista e um policial. O ator, que ganha um close apesar da participação pequena, é um jovem Titus Welliver, mais conhecido como "Homem de Preto" do seriado "Lost". Assim que ouvi estas palavras, pensei "Que viagem!" Bom, se há um filme para "viajar", este é um candidato.


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Clube da Leitura: O tempo congelado

Conto escrito para o evento Clube da Leitura, de 18/02/14, no sebo Baratos da Ribeiro, em Copacabana. A inspiração para o texto foi um trecho do romance "Extinção", de Thomas Bernhard.


Foto: Camila Márdila (tirada do perfil de Facebook do "Coletivo transverso")



O tempo congelado


O homem solitário, entristecido, sentado em um bar. Ele escreve por escrever. Como forma de passar um tempo que não passa. Preenche folhas em branco, com margens amareladas. Escreve em um caderno antigo, encontrado por acidente em uma gaveta. Queria ser escritor, mas nunca superou a falta do que dizer. São palavras que não têm razão pra ser, exceto ocupar o vácuo entre os momentos. São pedidos de socorro.
Bebe sem vontade, fuma sem tesão. Sente-se em uma dimensão paralela; estranha e familiar ao mesmo tempo. O ambiente é o mesmo, assim como as pessoas que passam à sua frente. Tudo é igual. Exceto ele, que não está mais lá. Está em uma cabine transparente, hermeticamente fechada, observando tudo. São seres desfilando em um aquário, o mundo lá fora. Ele está "lá", ausente. Percebe que não pode se mover. Que todos os momentos se resumem a um instante estático. Uma vida inteira resumida em um olhar perdido, um sorriso torto e a pele oleosa, formando um desenho quase expressionista. Ao fim, todos somos caricaturas, moldadas por nós mesmos e nossos desastres. Um retrato a tinta e recorte. Não há o que dizer, pois o discurso foi sugado. Abre os olhos e se percebe como uma fotografia de uma página em branco, com manchas amareladas. Um simulacro de criação, estéril em sua concepção. Este tempo não andará. A morte é um lago parado. Para de escrever.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Crônica: Um calor do caralho!



Um calor do caralho!

 

We can't stop here! This is bat country!
Hunter S. Thompson

O clima esquentou, não há dúvidas. Nas ruas, indiferentes avaliadores de temperatura estampam 50º e há cheiro de sangue. Misturado com urina, pimenta, carne e lágrimas. Wander Wildner esteve no sebo Baratos da Ribeiro e cantou "Um lugar do caralho". Se ele vivesse nesta cidade, adaptaria a letra para "Um calor do caralho!" A menina sentada em uma mesa ao lado da minha no bar define: "Um calor dú ca - ce - tí !" Eu não sei. Fico com caralho mesmo. Afinal, desde o começo de 2014 sinto que estamos todos tomando no cu, metaforicamente falando. Bom, alguns não.
A morte brutal do cinegrafista, atingido por um rojão, encerrou a fase romântica das manifestações. Deu-se início a uma era de prata, cuja perspectiva conserva somente a coloração do metal, e nada de sua preciosidade. As redes sociais, após uma longa convivência pacífica de tofu, se tornaram as arenas de MMA para que foram originalmente planejadas. À distância, os combatentes tiram as luvas e travam um confronto post a poste.
A situação seria engraçada se não fosse tão Kafka de ressaca às 7h da manhã de uma segunda-feira. E, é claro, acordando com este clima que, se não nos matar, nos transformará em mutantes. Prevejo que em breve poderei ler no escuro.
Estou na Casa Porto, um sobrado na Zona Portuária, e uruguaios cantam Cartola. São bons, e o ligeiro sotaque dá ao show um leve toque de experiência antropológica. O ar condicionado do local ajuda a reorganizar as ideias. Isto, e as doses de Heineken e Budweiser, cervejas sem milho. Suponho. O embaralhamento da mente auxilia em uma ordem caótica de paz artificial. Também serve à adjetivação inescrupulosa que é uma beleza.
Estalo os ossos e, em um lugar distante e desencantado, o reino da Central do Brasil, o chicote deve estalar no momento. É um filme velho, com gente correndo em meio a nuvens tóxicas e nervosas. Não acompanho em tempo real à manifestação que ocorre. A mente, travesti violento, me sacode.
As pessoas que estão lá, cuja definição depende da filiação alheia, foram gritar contra os abusos sucessivos do estado. De novo, a definição do estado é feita de acordo com quem você fala. "A gente morre sem querer morrer", canta meu amigo brasileiro de olhos azuis. Mais uma vez, a política invade no quebra quebra, em forma de música de protesto. É impossível viver no Rio de Janeiro de fevereiro de 2014 sem estar emergido em caos político. A máxima de Antônio Conselheiro se tornou realidade.
Ai de nós, admirados de sabiá! As aves que aqui gorjeiam não vandalizam como lá! Temos 10 mortos, "vândalos" de todas as  formas, tamanhos e interesses, uns picadeiros de guerra civil e nenhuma solução. Se sobrevivermos até a copa, será um espetáculo e tanto. Pouco provável que tenha futebol, com exceção do Fla - Flu ideológico.
Os inimigos se multiplicam como marcas de merda de pombo no chão. Depois de fevereiro, nem todos curtirão as postagens do vizinho como antes. Com exceção (esta palavra na moda) se for a respeito deste calor do caralho cacete tenso! Prestes a enrabar. O clima fritou os miolos de todos nós. Chove, porra!

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Clube da Leitura: Cidadão de bem

Conto escrito para o evento Clube da Leitura, de 04/02/14, no sebo Baratos da Ribeiro, em Copacabana. A inspiração para o texto foi, em primeiro lugar, a narrativa "Passeio Noturno", de Rubem Fonseca.


Cidadão de bem


Não sei o que estou fazendo aqui. No duro. Não mesmo. Alguém me responde? Não sou vagabundo. Sou empresário, formado em Direito, pós nos Estados Unidos, pago meus impostos e pai de família. Tenho mulher e filhos. Enriqueci com meu esforço e esperteza. Nunca fui um desses acomodados, que deita na grana da família e faz porra nenhuma. Ou desses vândalos criados sem orientação, que sai pras ruas pra vandalizar, quebrar agência bancária, aterrorizar a cidadãos de bem como nós. Meu filho tem uns amigos assim na faculdade; ele me contou. Na minha casa, não entram.
Esses são o perigo. São eles que levam este país para o buraco, a devassidão, o comunismo. Eu sou apenas um executivo que tem um emprego estressante. Centenas de pessoas dependem de mim, dentro e fora da empresa. Sou uma das peças que movimentam a economia deste estado. Sabe onde muitos estariam se não fosse por mim? Desempregados, na rua, na desgraça, na pouca vergonha. É fácil me estampar minha foto no jornal e me chamar de demônio. Quero ver aguentar a pressão. E não de dia, não. É de hora em hora. Porque, sem mim, uma parcela do que permite este estado funcionar vai pro ralo. Ou seja, sem mim, você não recebe sequer seu salário.
Sou como qualquer outro empresário responsável por uma fundação com centenas de empregados. Para relaxar, tenho hobbys. Putas, droga, isto é o básico. Todo mundo faz, não tem problema, não machuca ninguém. Até, inclusive, beneficia, pois pago por serviços e movimento moeda, além de dar dinheiro para pessoas que estão trabalhando. Pode-se até questionar a moralidade de seus trabalhos, mas, cá entre nós, é uma baita hipocrisia. Se a mulher quer dar a boceta ou o cu, o problema é dela. Quanto a financiar o tráfico, não vejo nada demais. Enquanto houver traficante, haverá menos ladrões, porque eles se empregam por lá, e quem sai da linha, é feito de exemplo. Como na minha empresa. Fez merda? Fora!
Mas não é só de gozar e cheirar que um homem na minha posição pode recarregar a energia. A razão por que fazemos parte de 1% privilegiado é que gostamos de desafios. A adrenalina é o que nos torna capazes de tomar decisões duras a cada segundo. Tive vários hobbys. Quando era jovem, costumava sair com uns amigos da faculdade e íamos atrás de mendigos. Não para bater, esclareço. Mas, às vezes, ficavam agressivos e sabe como é que é?, tínhamos que nos defender. Muitas vezes, nos atacavam com querosene e, no meio da confusão, botavam fogo neles mesmos. Vê só que loucura?
Depois que casei e a mulher engravidou, percebi que não podia continuar nestas molecagens. É como meu pai dizia: ter uma criança é a melhor desculpa para parar de agir como uma. Então, sosseguei. Voltei-me para os esportes. Em especial, squash. Jogava com conhecidos do clube. Como o sujeito competitivo que sou, fazia de tudo para marcar mais pontos. Desenvolvi uma técnica, que consistia em bater com o máximo de força o adversário contra a parede. O braço incha, sabe?, então, desequilibra o outro, que perde em mobilidade e agilidade. Fiquei bom nisso. Uma vez, o braço do outro parecia uma beterraba ao fim. Finalmente, um dia, veio este sujeito tomar satisfação. Não gostei do tom e acertei a cara dele com a raquete. Ele reagiu, meus seguranças interferiram, uma confusão dos diabos. Enfim, cansei e resolvi para partir para outra.
Em um almoço de negócios, um conhecido meu me contou de caçadas privadas. Um grupo importava animais e os soltava na mata para serem caçados por empresários ou quem pudesse pagar para participar. Me interessei, comprei um rifle XLF-9, uma beleza de arma, e paguei minha inscrição. Chegamos lá no dia anterior, tomamos café na manhã seguinte, vimos nosso alvo e fomos à caçada. Foi muito bom, vou te contar. A sensação de alerta, de espreitar, sentir o cheiro e a aproximação do alvo, era uma adrenalina só. E era bom. Além de encontrar, muitas vezes eu era o que matava a caça. Voltei várias vezes. O problema é que era muito esporádico. É difícil encontrar alvo com o físico e o treinamento para sobreviver uma caçada. Não é como bater em bêbado. Se fosse, qual seria a graça? Então, eram animais que precisam estar em tal condição que estivessem aptos a correr, até se defender. Geralmente, ex-soldados que o grupo recrutava e soltava na mata para irmos atrás...
Como? Não, não, não caçávamos os soldados. Imagine. Isto seria assassinato. Não sou um assassino. Sou um cidadão de bem, e esta insinuação me ofende. E, olha, mesmo que os animais fossem gente de carne e osso, que caçássemos seres humanos, eles assinaram um contrato, e as famílias recebiam 10% do total, uma soma muito generosa. Mas não afirmo isso, apenas suponho.
Finalmente, precisei me afastar. A empresa passou por uma crise há alguns anos, alguém fez merda na Europa, as ações caíram, precisei vender umas subsidiárias, um inferno. Quando me restabeleci, descobri que o grupo que organizava as caçadas foi preso. Aparentemente, faziam parte de uma milícia, um desses esquadrões de extermínio. Então, acabaram as caçadas.
Nesse meio tempo, tive um enfarte. Fiquei internado, quase morri. O médico mandou eu maneirar um pouco, disse que escapei por pouco, etc. Fique feliz de não ter tido um AVC e não ter ficado babando no canto da boca como um amigo meu. Triste.
Sempre tive paixão por carros e corrida. Quando morei em São Paulo, até frequentei uma pista. Comprei um carrão, com parachoques salientes, o reforço especial duplo de aço cromado, veículo sensacional. Então, resolvi adotar um hobby mais calmo: dirigir à noite. Assim, chego em casa, janto, pego meu carro e dirijo. Num dia mais estressante, dirijo por mais tempo, sem pressa pra voltar. Ás vezes, me esqueço tanto do tempo, e gosto tanto de ouvir o ronco do motor que acelero. Nunca dirigi bêbado ou passei do limite de velocidade. Como disse, sou um cidadão de bem.
Hoje, por exemplo, estava tenso. Amanhã será um dia tenso na firma. Me distrai na direção e atingi aquela senhora. Sinto mal que tenha perdido as pernas, mas não foi minha culpa. Quanto aos outros atropelamentos que ocorrem nesta região, nada sei. O modelo do carro de cujas fotos me mostraram é parecido com o meu, sim. Mas não é, eu garanto. Além do mais, se eu saísse à noite para atropelar pedestres, não seria descoberto. Tenho pós nos Estados Unidos, sou empresário de uma firma responsável por centenas de pessoas. E, mais importante, sou um cidadão de bem. Logo, quanto vocês querem para me liberar aqui e a gente evitar a encheção de saco de um processo que não dará em nada? Mas falem logo, que amanhã terei um dia terrível na companhia.